quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Entrevista com Benedicto Monteiro

Entrevista com Benedicto Monteiro publicada na revista Caros Amigos, edição de novembro de 2006.

Homem do povo, getulista histórico, amigo de Jango, Brizola e Ribeiro, deputado estadual do Pará, cassado, caçado e preso em 1964, anistiado e eleito duas vezes deputado federal, procurador-geral e secretário de Estado do Pará, o escritor nascido e criado às margens do Amazonas, renovou a literatura, a poesia, a música e a filosofia do seu povo. É autor de romances, poemas, músicas, e muitos livros publicados, entre os quais a sua tetralogia amazônica que imortaliza o personagem Miguel, o mestiço que a pena de Benedicto fez ícone da nacionalidade, elevando-o à galeria maior da nossa representação literária, onde já figuram o sertanejo de Euclides da Cunha, o jeca de Monteiro Lobato e o gaúcho cantado nos ditirambos dos pampas. Este repórter leu a obra e, na sua modesta opinião, o mestiço miguel não fica em desvantagem em relação a ninguém. Como eles, se integra com tal perfeição à "teia da vida", que seu espírito, pleno de resistência e liberdade, Fritjof Capra identificaria como um condutor do "ponto de mutação".
Nele, a síntese amazônica, fundamental ao homem brasileiro, vem tornar completo o "homem do equador", anunciado pelo profeta Oswald de Andrade.


Mario Drumond: Benedicto, a Amazônia ainda é nossa?

Benedicto Monteiro: Eu diria que politicamente, o território como é visto no mapa, ela é nossa, ainda. Mas as influências que vem sofrendo, em especial econômicas, sejam estrangeiras ou do sul do país, são sempre serviço de interesses de fora. Até as conquistas culturais e científicas que tivemos, como o Museu Emílio Goeldi e outros museus, a Embrapa, o Instituto Evandro Chagas, o Enaea e outros centros de pesquisas, que detêm acervos de conhecimentos fundamentais para a Amazônia, não são nem sequer levados em consideração. Isso porque a Amazônia é, para as elites mundiais e nacionais, apenas um depósito de riquezas estratégicas.

Mario Drumond: Os poderes estaduais, como os do Pará e Amazonas, exercem algum poder real sobre seus territórios?

Benedicto Monteiro: Em 1964, logo após o golpe, só o governo do Estado do Pará teve subtraído cerca de 75% do seu território. Setenta e cinco porcento! Todo esse território passou ao governo federal. Em recente entrevista, o diretor do Iterpa revelou que há cerca de 50 mil títulos de propriedade fraudados. Cinquenta mil! Fora as terras que os grileiros ocupam. O decreto era um absurdo, foram desapropriados 100 quilômetros de cada lado das estradas federais existentes, em projeto ou por projetar. Então, era tudo! Eu vejo agora que intuito dos militares era assegurar uma anti-reforma agrária na Amazônia. Porém, quanto aos 100 quilômetros, penso que foi erro datilográfico ou loucura dos que redigitam o decreto-lei, que serviu a muitas arbitrariedades do INCRA, do Getat, e do Gabem, no domínio e na distribuição de 75 porcento das terras do Pará. Depois foi revogado. Só que enquanto vigorou colocaram lá quem quiseram, sem o governo do Pará tomar conhecimento.

Mario Drumond: E o que é feito dessas terras? O governo as entregou a estrangeiros ou a testas-de-ferro?

Benedicto Monteiro: É uma caixa-preta, ninguém sabe nada. Mais importante, para mim, é a riqueza mineral da Amazônia, a região mais rica do mundo em minério... Você fala em ouro, ferro, manganês, cobre, níquel, tudo que é minério, lá temos mais que em qualquer outro lugar. Isso estava sob o controle da Vale do Rio Doce, que era estatal, mas o governo FHC a entregou ao estrangeiro por um preço que não pagaria nem a área de terra (cerca de 400.000 hectares) que ela ocupava no
Pará. Para te dar uma idéia, citando só dois exemplos: todo o ferro de Carajás é exportado e o alumínio que é produzido no Pará é dos japoneses.

Mario Drumond: E essa história de que nos mapas europeus e dos Estados Unidos a Amazônia foi subtraída do Brasil?

Benedicto Monteiro: Eu ouvi depoimentos de diversas pessoas que me dizem que, no ensino básico das escolas européias e norte-americanas, a Amazônia já está sendo apresentada como patrimônio da humanidade, e não como pertencente ao Estado brasileiro. O povo, infelizmente, não sabe de nada, até porque não tem acesso à informação do próprio Estado, nem da realidade amazônica. Nem as elites, inclusive as políticas, querem saber do Pará. Se você, hoje, questionar um deputado da nossa Assembléia, ele não via saber te responder nada. Com o nosso velho aparato de Estado dominado por uma política econômica que privilegia o sistema financeiro, nós no Brasil não podemos fazer nada pela Amazônia. Nem mesmo preservá-la.

Mario Drumond: Nem o governo federal, que concentra todo o poder de decisão, teria condições de dar uma solução?

Benedicto Monteiro: Teria, se seus ocupantes soubessem o que é a Amazônia. Porque, se soubessem o que ela significa para o Brasil, se preocupariam muito mais com ela. É lá que residem as soluções para a economia nacional. Uma obra que considero importante, do professor Samuel Benchimol, demonstra que, se a Amazônia fosse aproveitada lucidamente pelo Brasil, já teríamos as dívidas pagas, externas e internas. Mas ninguém, em esfera alguma de poder, quer saber de estudar a Amazônia. No meu caso, foi diferente. Talvez por ser escritos e ter estudado o homem na Amazônia, me tornei o que chamam agora "ecologista". Minha obra ficcional é, por si, um manifesto ecológico, mas tratando o homem como parte da natureza e não como um perigo para ela. Eu creio que a única maneira de salvar o Brasil, de salvar a Amazônia, é a alfabetização ecológica.

Mario Drumond: Você acha que essa nossa ignorância é fomentada pelos que querem nos tomar a Amazônia?

Benedicto Monteiro: Eu não acho, eu tenho certeza. Já o papel da mídia, comandada sabemos por quem, está jogando não só no Brasil, mas em todo o mundo, com a divisão entre o que eu chamo de “ecologia profunda” e “ecologia superficial”. Estão dando toda a ênfase à “ecologia superficial”, que vê o homem como preservador, conservador ou destruidor, mas sempre fora da natureza. Com isso, querem que as pessoas se preocupem apenas com a preservação das riquezas. Para quê? Para servir às estratégias dos países hegemônicos, e não às nossas. Mas existe uma resistência na Amazônia. No início do século 20 havia cerca de 4 milhões de indígenas na Amazônia, que, de lá pra cá, foram dizimados, um verdadeiro genocídio. Isso significa que houve resistência, uma resistência que persiste no mestiço, que miscigenou com o índio e se fez seu herdeiro legítimo. É ele que está lá, a postos, pronto para enfrentar o invasor. O grande problema são as elites, e quando digo elites não me refiro apenas às elites sociais. Eu me refiro às elites políticas, dos trabalhadores, dos empresários; são elas que têm prejudicado economicamente o Brasil.

Mario Drumond: Essa postura francamente entreguista das elites teria origens no udenismo pós-Getúlio?

Benedicto Monteiro: No Pará não tivemos esse udenismo exacerbado do sul. Agora mesmo, o atual governador chamou grupos folclóricos para um trabalho de preservação da nossa música, que é riquíssima. Nenhum Estado ou país possui a quantidade de ritmos e formas musicais que existem no Pará. E isso estava se perdendo. Então temos de concordar que é uma iniciativa bem pouco udenista.... Lá existe um espírito nacionalista ainda vivo. A única forma de resistência que pode prosperar no Brasil é o nacionalismo. E não é à toa que ele existe no Pará. Sempre fomos muito ligados a Portugal, a primeira nação desbravadora do mundo e, portanto, o primeiro nacionalismo. Aliás, no início, o Pará era ligado diretamente a Portugal, e não ao Brasil. A cabanagem, por exemplo, foi uma revolução nacionalista, nativista e patriótica, e acabou sendo esmagada por autoridades portuguesas, já na regência brasileira. Como ainda hoje, as autoridades federais não sabem que o Pará é um Estado membro da República Federativa do Brasil.

Mario Drumond: Você acha que a Amazônia poderia ter vocação industrial?

Benedicto Monteiro: Olha, a Amazônia pode ser tudo o que quiser. É um mundo por ser conquistado. O que eu acho absurdo é gente do sul que vai lá e volta dizendo que estão queimando tudo, acabando com as florestas... Não sabem nada, e saem falando como grandes autoridades. O que há de verdade nisso acontece de Marabá pra baixo. Por quê? Aquelas terras foram distribuídas pelo INCRA e pelo Getat para multinacionais e gente do sul. Se você for lá, vai ver que é raro encontrar paraense, só gente de fora. Aquelas terras nunca foram queimadas por paraenses. Estão queimando-as para plantio de soja e criação de gado, o chamado “agronegócio”. Mas o que devasta mesmo é a extração irracional de madeira.

Mario Drumond: Existe algum dado sobre a propriedade privada no Pará hoje?

Benedicto Monteiro: Com informações que possam ser acessadas, não. Grandes propriedades privadas de paraenses no Pará, hoje, são poucas. Não há mais grande empresa de paraenses. São todas estrangeiras, japonesas, européias, norte-americanas, do Sul, do Nordeste... No Pará, a dominação ainda está no estágio da dominação econômica. É mantida a fachada de Estado brasileiro, apesar de ser cada vez mais fachada e menos Brasil.

Mario Drumond: Qual a sua opinião sobre Marina da Silva?
Benedicto Monteiro: Com Mesmo sendo ela voltada para a nossa região, seu ministério não tem as mínimas condições para tomar contato com a nossa realidade. Mas eu não teria um nome do poder político atual para substituí-la. A maioria desse pessoal conhece a Amazônia de avião. Para não tomar conhecimento da corrupção da Sudam, simplesmente a fecharam, como fecharam o BNH. Esse governo nada fez pela Amazônia.

Mario Drumond: Uma solução do tipo Marcello Guimarães e as microdestiladiras poderia ser um caminho também para a Amazônia?

Benedicto Monteiro: Com Não só para a Amazônia, para todo o país. O caminho sempre será o das microssoluções. A Amazônia só tem esse caminho. Quando você for lá, eu posso lhe mostrar, por exemplo, o artesanato. Você vai ficar encantado com o que aquele pessoal faz com as coisas de lá. Tudo que a natureza dá eles transformam. Espinha de peixe, vegetais, minerais, é extraordinário. Eu advogo a idéia de que deveríamos ter uma legislação ecológica que considerasse o homem como parte da natureza. Aí, sim, o povo iria se beneficiar e teríamos, enfim, o tal “desenvolvimento sustentável”. Desenvolvimento sustentável só pode vir pelas microssoluções. Considere a nossa experiência com o álcool. Tinha tudo pra dar certo, mas optaram pela produção em latifúndios. Tivemos até um exemplo semelhante ao de Marcello na Amazônia. Na década de 50, nas margens do Tocantins, pequenos proprietários plantaram cana e fizeram renome com boas cachaças.
Isso acabou porque o poder econômico trocou a cana pelo café, como produto de latifúndio facilitador do contrabando. Levavam café, traziam contrabando. Belém chegou a ser a cidade que mais tinha carros “importados”. Não mais fazemos cachaça no Pará. Nada pode ser resolvido em qualquer lugar do mundo com latifúndios, muito menos na Amazônia.

Mario Drumond: Os governos do Pará nunca pensaram nas microssoluções?

Benedicto Monteiro: Os sucessivos governos que tivemos só estimularam latifúndios. E depois vêm falar de desenvolvimento sustentável. Ora... O que falta é interesse do governo em dar educação e condições para que o povo brasileiro resolva os problemas do país. Você pega qualquer político, no Executivo e no Legislativo, e eles nem querem saber disso. Não pensam em estimular, pela educação, o conhecimento do povo da própria terra. No Pará, não tínhamos versão recente da história do Pará, eu tive de fazê-la por meus próprios meios. Em quase todos os Estados brasileiros, isso não existe. O brasileiro está sem noção da própria história, e não tem a menor idéia da nossa geografia.

Mario Drumond: E os ecologistas se aproveitam para dizer que estamos destruindo nossas riquezas por ignorância...

Benedicto Monteiro: Tudo mentira! O Pará é prova de que o brasileiro não destrói, preserva. No que toca à responsabilidade do povo, é o que temos melhor e mais bem aproveitado das riquezas naturais da Amazônia. Sabem fazer e como fazer. Para te dizer a verdade, a única solução possível para o Brasil começa pela reforma agrária. Acho que fui o único deputado que propôs uma lei para a reforma agrária de verdade, mas a nossa Assembléia nem sequer quis discuti-la, mandaram arquivar; e depois mandaram também para a polícia...

Mario Drumond: Por que livros como os seus, e outros importantes para conhecer o Brasil, ficam restritos à língua portuguesa? Não há interesse lá fora?

Benedicto Monteiro: Claro que há. Maria de Todos os Rios foi o meu último livro publicado na Holanda. Agora mesmo, estudiosos alemães estão fazendo uma leitura profunda da minha obra, e tenho recebido gente de vários países com o mesmo interesse. O que não há é interesse dos nossos governos, nem das elites mundiais, em propagar a nossa realidade. Somos um tesouro que querem esconder do mundo.

Mario Drumond: Você acha que vai chegar o dia em que eles vão querer nos invadir e tomar a Amazônia?

Benedicto Monteiro: Entre as formas como as invasões são feitas hoje, a econômica está muito adiantada. A questão da água é preocupante. Não só temos a maior bacia hidrográfica do mundo, como temos vastos aquíferos inexplorados. E tem por aí doido para tudo. Não se lembra daquele que fez o projeto do lado amazônico?

Mario Drumond: O que, na sua opinião, o Brasil precisa saber da Amazônia em primeiro lugar?

Benedicto Monteiro: A meu ver, o mais importante seria o Brasil se conscientizar de que, na Amazônia, somos uma civilização fluvial. E isso nos torna uma região diferente. As rodovias lá ligam rios, saem do nada e vão para o nada. Todo o potencial fluvial permanece inexplorado, nem sequer temos linhas fluviais regulares. Getúlio foi o único estadista que teve visão para a Amazônia. Ele criou o Bando da Amazônia, a Sudam, estatizou toda a infra-estrutura, os serviços públicos, e comprou uma frota de navios na Holanda para suprir os ramais fluviais. Eram transatlânticos que ficavam e Manaus, e faziam a linha Belém-Manaus, e outros portos do Nordeste e do Sul. Navios menores atendiam ramais secundários. Acabou, o que representou enorme atraso para os Estados amazônicos, com prejuízos incalculáveis. Então, se o Brasil quiser entender a Amazônia, tem que começar por entender que somos uma civilização fluvial. Sem entender isso, não prospera nada que se faça pela Amazônia. Todas as cidades amazônicas estão na beira dos rios. Todas as pessoas moram perto dos rios, vivem dos rios, sobrevivem dos rios. Olhe o mapa hidrográfico do Pará e verá que é um emaranhado de rios, sem falar nos igarapés. Belém era cheia de igarapés. Chegaram a planejar torná-la a Veneza brasileira, o que seria, além de belíssimo, excelente para a cidade. Mas vieram os rodoviários, aterraram tudo, encanaram, e aquelas coisas todas que hoje são grandes problemas. Poderíamos estar andando de barco em Belém. E nem a ligação óbvia por via fluvial para Icoaraci e Mosqueiro temos mais. Querem fazer do Pará um estado rodoviário, é um absurdo! Antes fosse transporte ferroviário, mas a única estrada de ferro que tínhamos, acabaram com ela. O que nos resta é o transporte aéreo, e caro. A Panair do Brasil começou lá, com os hidroaviões, pois tinham campos de pouso naturais nos rios. Não temos mais hidroaviões! Se você não tiver a visão de que o homem é parte da natureza, que a natureza é “a teia da vida” que Capra está desvendando, e que somos uma civilização fluvial, de hidrovias, um Estado trançado de rios e igarapés, como você entenderá o Pará, a Amazônia? Nunca vai entender! É por não entendermos a Amazônia que a estamos entregando à exploração vil pelos estrangeiros. O ferro de Carajás, o alumínio, tudo para os estrangeiros.

Mario Drumond: Então estamos perdendo mesmo a Amazônia?

Benedicto Monteiro: Infelizmente, estamos. Mas eu ainda acredito no nosso povo. No passado, foram os mestiços que fizeram a Cabanagem. Eu digo que a Cabanagem foi a única revolução do mundo em que o povo depôs o poder e assumiu de fato o poder. E isso aconteceu no Pará, em 1830. Veio a repressão, e matou mais de 40.000 pessoas. Tivemos em Eduardo Angelim o grande herói revolucionário. Ele liderou a verdadeira revolução brasileira, e eu digo revolução no sentido inclusive marxista – era o povo que derrubava o governo alienígena, imperialista, gente vindo de fora para governá-lo. Um povo que queria e sabia como assumir e conduzir o poder em sua própria terra.

Mario Drumond: A Revolução Caraíba de Oswald de Andrade? Ou um precursor de Solano Lopes no Brasil?

Benedicto Monteiro: Não, não era uma revolução de um ditador. Era o povo conquistando poder. Mas o pior é que os próprios paraenses não sabem nada disso. Eu estudei no Colégio Marista, no Pará, na década de 40. Alguns professores eram franceses, e eu saí de lá sem saber nada sobre a Cabanagem, sobre o Pará e o Brasil. Mas sabendo tudo sobre a França e a Revolução Francesa! E hoje nem isso saem sabendo... É uma tristeza.

Um comentário:

barroso disse...

Prezado Dr Laredo, daqui do rio de janeiro, antonio barroso tenorio o parabeniza pela comenda maior recebida pelo emerito escriitor de nossa terra.Gostaria que comentas-se em seus diários sobre o desasre ecologico de tucurui em 1984,ano de sua inauguração,a fim de aler-tar BELO MONTE.Constatei em Vila do
Carmo que a média de sepultamento
anual era entre 45 a 50, entretan-to,naquele ano da inaugração foram
sepultados ali 96 corpos, em conse-
quencia do"chasão" verde temperado com o pó da china que desceu o rio
matando bichos, peixes e gente.Ve-se que morreram centenas de ilheus,
principalmente, sepultados em outras localidades.
Jornais da época nada comentaram.